Começo por agradecer o convite que me foi feito pelo Professor Vitor Bastos, no âmbito da comemoração dos dois anos do grupo #Somos Solução, de que faço parte, para redigir um artigo que abordasse o tema da crescente burocratização do ensino e da desvalorização do papel do professor e seu afastamento das funções essenciais de ensinar e apoiar a aprendizagem e a socialização dos alunos.

Foto de Kampus Production no Pexels

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Começo por agradecer o convite que me foi feito pelo Professor Vitor Bastos, no âmbito da comemoração dos dois anos do grupo #Somos Solução, de que faço parte, para redigir um artigo que abordasse o tema da crescente burocratização do ensino e da desvalorização do papel do professor e seu afastamento das funções essenciais de ensinar e apoiar a aprendizagem e a socialização dos alunos.

Porque aceitei este desafio? Sou professora universitária há mais de 30 anos, acompanho o que se passa nas escolas, ouço o que algumas mães e professores dos vários níveis de ensino me dizem e faço formação pós-graduada de professores de todos os níveis de ensino e de vários domínios disciplinares. Desenvolvo ainda investigação com alunos e professores. Será com base neste conhecimento empírico e em alguma literatura especializada sobre a Eficiência vs Ineficiência da Escola e Como a Melhorar que organizei a minha escrita.

A avaliação da eficiência da escola medida pelos resultados (learning outcomes)

Este é um indicador importante, objetivo e comparável. Que resultados obtêm os alunos na avaliação dos conhecimentos adquiridos? Neste aspeto importa ter em conta a avaliação interna feita por cada escola, a nacional realizada por meio de exames bem construídos e a internacional recorrendo a projetos como o PISA e o TIMSS.

Os exames bem-feitos, credíveis e comparáveis de ano para ano em termos de grau de dificuldade, deveriam ser realizados no final de cada ciclo escolar: 1.º e 3.º ciclos e ensino secundário. Excluo o 2.º ciclo pois sou favorável a que se associem o 1.º e 2.º ciclos, pois o desenvolvimento humano em todos os domínios (emocional, cognitivo e social), tem um período de tarefas de desenvolvimento, entre elas as escolares, que vai dos 6 aos 12 anos (cf. Coll, Marchesi, & Palacios, 2018; Newman & Newman, 2015). A transição do 1.º para o 2.º ciclo acarreta algumas disfuncionalidades que residem sobretudo na passagem da monodocência para a multidocência, com tudo o que lhe está associado. Os conhecimentos do 2.º ciclo não são tão especializados que não possam ser lecionados por três professores bem formados em cada uma das seguintes áreas: línguas, ciências e expressões, aliás o que já acontece em alguns países. É o caso da Finlândia. Assim se resolveriam dois dos atuais problemas do nosso sistema de ensino: a ansiedade de alunos e pais para conseguirem gerir tantas disciplinas e tempos disciplinares em crianças com pouca maturidade para o fazer, e a falta de professores que já se faz sentir e será pior nos próximos anos. Esta proposta exigiria uma reforma no sistema educativo e na formação de professores, que não cabe no âmbito desta reflexão.

Os resultados dos exames nacionais bem construídos e comparáveis de ano para ano permitiriam a cada escola e ao sistema educativo no seu todo ter um indicador precioso de como estão ou não a evoluir face a si próprias e ao conjunto das escolas do país. Assim o Ministério da Educação poderia dar mais autonomia real a cada escola ou agrupamento de escolas na gestão administrativa e do currículo e até do acesso à profissão docente e dedicar-se ao que lhe deveria competir que é, entre outros afazeres, criar bons indicadores de eficiência do sistema educativo e aplicá-los com rigor.

A nível internacional são muito importantes os resultados de projetos como o PISA (Programme for International Student Assessment)1 e o TIMSS (Trends in International Mathematics and Science Study)2. Estes fornecem mais um indicador de como se está a comportar o nosso sistema de ensino face à aquisição de conhecimentos em áreas essenciais do currículo: literacia matemática, literacia da língua materna e literacia das ciências e, mais recentemente, a literacia financeira.

1 https://iave.pt/estudo-internacional/pisa/

2 https://en.wikipedia.org/wiki/Trends_in_International_Mathematics_and_Science_Study

Nos últimos anos, além de se terem acabado com os exames no 1.º e 3.º ciclos, um erro grave, pois fez baixar as expetativas de professores, pais e crianças, vimos que esta política se refletiu na regressão dos valores obtidos pelas crianças portuguesas no PISA. Estávamos finalmente a convergir com a média dos países da OCDE que participam neste projeto e fizemos uma reversão de vários anos. Este aspeto não foi devidamente analisado pelos responsáveis políticos, pelos diretores das escolas, pelas associações de pais e também pelos professores. E não se repercutiu nos meios de comunicação social. Às vezes penso que muita gente anda distraída do que é essencial. Por exemplo, dá-se uma importância indevida à contestação dos rankings que são publicitados todos os anos, não para analisar as variáveis que são responsáveis por um cada vez maior número de escolas públicas não estarem no topo das 50 melhores escolas do ensino básico e secundário, mas para contestar os próprios rankings. Estes são mais um indicador de como as escolas se estão a comportar. E mesmo que estes rankings sejam construídos com base sobretudo na avaliação dos exames nacionais não deixam de ter o seu mérito. O que deveria preocupar a comunidade escolar e os meios de comunicação social era analisar e propor medidas para que as escolas nos níveis inferiores do ranking pudessem ter melhores resultados.

Um dos livros que nos ajuda a compreender esta dimensão da eficiência (effectiveness) da escola e como a melhorar (improvement) foi publicado por Michael Rutter et al. em 1979 com o título “Fifteen Thousand Hours”. Segundo Hargreaves (2001) o êxito obtido por este livro junto das comunidades educativas leitoras anglo-saxónicas deve-se ao conceito de “school ethos”, embora o que fundamente este conceito sejam as correlações entre “um número de variáveis de processo associadas a cada escola e quatro varáveis associadas aos resultados” (p. 487). Os resultados acumulados pela aplicação deste modelo foram sumariados por Sammons et al (1995) em 11 itens que caracterizam as escolas eficientes. São eles: (1) liderança profissional; (2) visão e objetivos compartilhados; (3) um ambiente de aprendizagem; (4) concentração no ensino e aprendizagem; (5) ensino intencional; (6) altas expectativas; (7) reforço positivo; (8) monitorizar o progresso; (9) direitos e responsabilidades dos alunos; (10) parceria casa-escola; e (11) uma organização que aprende.

Contudo a maioria dos estudos de eficiência que usaram este modelo concentrou-se nos resultados cognitivos dos alunos. Estes estudos referem menos evidências sobre os processos escolares e de sala de aula que são importantes para determinar o sucesso das escolas na promoção de resultados sociais e afetivos, que também são importantes. Devido ao foco na dimensão cognitiva, a revisão fala mais sobre as correlações da eficácia académica. Os resultados destes estudos, que são muito importantes, também não conseguiram perceber se um estilo de ensino específico é mais eficaz do que outros, mas indicam que a flexibilidade e a capacidade de adaptar as abordagens de ensino são mais importantes do que a noção de um único estilo de ensino (Sammons, Hillman, & Mortimore, 1995). O que me leva a pensar que os professores deveriam ser formados para saber aplicar diferentes métodos e estratégias, sobretudo os que já se sabe que produzem melhores resultados. A título de exemplo, seria bom que os professores do 1.º ciclo saíssem das escolas de formação inicial conhecendo e se possível dominando mais do que um método de ensino da leitura. Contudo, deveriam também saber que os resultados acumulados da investigação científica sobre a eficiência dos diferentes métodos tem provado que o método fónico é o mais adequado para responder a todas as crianças que se estão a iniciar na alfabetização da língua materna (Dehaene, et al., 2010, 2011; Morais, 1997, 2013)

Ao analisarmos os 11 itens e se os aplicássemos com rigor às escolas portuguesas, pensamos que algumas se não muitas não ficariam bem no retrato. Analisemos apenas e de modo breve os itens 4, 5 e 6, e o que foi proposto nos últimos anos para os atingir. Pouco ou nada, e podemos afirmar que até houve retrocessos.

Comecemos pela “Concentração no ensino e na aprendizagem”. É feito pelas escolas com cada vez mais dificuldade pois os professores são solicitados a preencher muitas papeladas, realizar reuniões infrutíferas, justificar por escrito a avaliação e sanções disciplinares, fazer uma avaliação de desempenho pouco credível, ter cada vez uma maior carga letiva, fazer planos de recuperação para alunos que não querem aprender, etc. etc. para alimentar a máquina burocrática e centralizadora do Ministério da Educação, que quer ter estatísticas de sucesso a todo o custo, transformando os professores e as escolas públicas em simples funcionários, sem autonomia pedagógica e de pensamento. Reconheço que há alguns professores que gostam deste papel, pois retira-lhes toda a responsabilidade. Penso que a maioria nele não se revê. E assim, muitos dos bons professores estão a contar o tempo que lhes falta para se reformar e outros abandonam o ensino. A título de exemplo, mesmo no mundo universitário, o tempo de ensino e aprendizagem, após a Reforma de Bolonha, tem vindo a reduzir-se de tal modo que chega ao cúmulo de no 1.º semestre em algumas escolas o número de semanas dedicadas ao ensino direto igualar o número de semanas dedicadas à avaliação final. Como se aprende durante o processo (Bruner, 1999) e se devem avaliar rigorosamente os resultados do mesmo, dedicar o mesmo tempo ao processo de ensino direto e ao de avaliação final não me parece nada adequado. Muitos justificam que há mais tempo para o trabalho autónomo do aluno. O problema é que muitos alunos não sabem, em termos de organizar a sua aprendizagem, o que fazer nesse tempo de autonomia que lhes é dado. Deste modo muitos fazem tudo menos estudar. Há ainda o problema, que parece estar a tornar-se crónico, de falta de professores em muitas escolas e em algumas disciplinas. Uns estão sobrecarregados de aulas, de alunos e de burocracias, e outros não querem os locais e horários que lhes são destinados.

E o que dizer de um outro indicador muito importante assinalado nestes estudos das escolas eficientes, o do “ensino intencional”? O que caracteriza este conceito? O ensino intencional é aquele que formula objetivos de desempenho precisos e alcançáveis pela maioria dos alunos, concebe atividades diversificadas para estes aprenderem e os alcançarem, outras para mostrarem o que aprenderam e terem feedback corretivo e analítico, essencial para progredir na aquisição de conhecimentos – saber e saber-fazer, de uma dada disciplina. Será que com um cada vez mais reduzido número de aulas dedicadas à aquisição de conhecimentos, sobretudo nestes últimos dois anos de pandemia, este objetivo é ou foi alcançado? Duvido muito. Falou-se na recuperação das aprendizagens, eu prefiro usar no singular aprendizagem, pois trata-se de um conceito, mas penso que pouco tem sido feito em algumas se não muitas escolas, sobretudo para os alunos que mais precisam. Não estou a dizer que a maioria dos professores é responsável por esta situação. O que pergunto é que condições criou o Ministério da Educação para superar esta dificuldade? Se há falta de professores, se há disciplinas em que nunca se recupera a aprendizagem mesmo em tempo de não pandemia, como o fazer agora, sem dar mais condições às escolas?

E como responder a esta outra característica das escolas eficientes “altas expectativas”? O que temos assistido nos últimos anos é um baixar de expetativas assustador. O que se espera dos alunos em termos de realização é cada vez menos. Passamos de programas, alguns bem estruturados, para aprendizagens essenciais. Isto no ensino básico e secundário. Bem sabemos que não há programa à prova do professor que o aplica. Mas este é um indicador de baixar de expetativas. O nosso comportamento é regulado pelas capacidades de cada um, pelas atitudes (Triandis, 1971) e expectativas pessoais, sociais e familiares (Hattie, 2009) e pelas consequências sociais que produz (Skinner, 1953, 1954, 1968). Baixar o nível de exigência é dizer às crianças e jovens que com pouco satisfazem os seus pais, professores e indiretamente o Ministério da Educação. E assim se vão modelando atitudes face ao trabalho escolar, ao valor da aprendizagem e à (des)valorização do conhecimento, sobretudo do que é da responsabilidade da escola.

Vygotsky (1991, 2010, 2021) e Bruner (1999) dizem que a escola induz uma nova forma de interpretar os fenómenos do mundo. Deve introduzir a criança no conhecimento disciplinar e na aprendizagem dos conceitos científicos. Mas para isso é necessário aprender e consolidar os saberes instrumentais: ler e escrever corretamente na sua língua materna (e de preferência em uma ou mais línguas estrangeiras), dominar as operações aritméticas e o cálculo mental e aprender a pensar logicamente (cf. Luria, 1990). Sabemos que isto ainda não foi alcançado por algumas se não muitas crianças e jovens que terminam a escolaridade obrigatória. Por isso, também no ensino superior, sobretudo no 1.º ano, muitos professores têm que reduzir o seu nível de exigência pois alguns alunos chegam sem bases em vários domínios, onde saliento o não saber interpretar e escrever corretamente o português. E não se trata só de erros ortográficos, mas de não dominarem a sintaxe e a semântica da língua materna. Não serve de nada dizer que temos a “geração mais bem formada” de sempre, porque uma coisa é ir passando e colecionando diplomas e outra o ter adquirido os conhecimentos associados a cada campo disciplinar e atividade profissional. É isto que torna alguém competente numa dada área de saber e atividade. Devem ainda ter desenvolvido competências no domínio moral (atitudes e valores) como a coragem, o sentimento de justiça e serem capazes de autocontrolo. Muito haveria a dizer sobre este tópico do desenvolvimento moral, de educar para a excelência de juízos e comportamentos morais das crianças e jovens. Mas, mais uma vez teria de redigir um outro artigo.

O que dizem algumas mães com três ou mais filhos com diferenças de idades entre dois a três anos que frequentaram as mesmas escolas públicas? Que o nível de exigência é cada vez menor. Uma delas chegou mesmo a desabafar numa entrevista: “Este meu último filho tem melhores notas que os anteriores e sabe muito menos”. E verifico isso com os alunos que recebo no 1.º ano da universidade, acabados de terminar o secundário, como antes referi. Entram com médias cada vez mais altas mas a maioria sabe cada vez menos. Claro que os desvios à média, positivos e negativos, mantêm-se praticamente constantes ao longo dos anos. Tenho sempre numa turma de 30 a 35 alunos, um a dois que são realmente bons e outros tantos com dificuldades. Mas a média tem vindo a baixar, mesmo que entrem com melhores classificações. Há, de facto, uma inflação das notas, no secundário e também no ensino universitário. Por exemplo, a maioria dos alunos que terminam os mestrados saem com a classificação de Muito Bom ou Excelente. Claro que alguns o merecem mas outros não. Isto acontece porque os seus orientadores sentem-se também avaliados e não gostam de terem notas de Suficiente ou Bom. Seria melhor não levar alguns destes alunos até ao fim ou então atribuir-lhes a classificação que merecem. Costumo brincar dizendo: “somos todos muito bons e excelentes, mas lá fora são poucos os que assim são reconhecidos”.

A avaliação transformada numa classificação final deve dar uma indicação fiável e válida ao aluno do que aprendeu e do seu lugar em comparação com os outros. Com uma cada vez maior inflação de notas, estas deixam de ter um valor discriminativo, que é uma das características de um bom instrumento de medida.

A crescente burocratização do ensino e das tarefas do professor e a sobrecarga de trabalho a que muitos estão sujeitos, em todos os níveis de ensino, não lhes deixa tempo para o essencial que é ensinar bem e fazer os alunos aprender. Para ensinar bem é preciso estar atualizado, quer dizer, ler bons autores e sobretudo os resultados da investigação. É ainda necessário trabalhar e debater com os pares e com eles trocar experiências de estratégias de ensino que funcionam. E isto parece acontecer cada vez menos nas escolas públicas portuguesas, do básico ao ensino superior.

A avaliação da eficiência e melhoria da escola tendo em conta outras variáveis

O que acabei de escrever é uma análise para avaliar a eficiência VS ineficiência da escola e como a melhorar baseada num modelo entrada-processo-saída (input-process-output features). Há tentativas de incluir outras variáveis e dar mais consistência teórica e este modelo. Uma delas é proposta por Hargreaves (2001) que se designa de “A capital theory of school effectiveness and improvement”. Esta abordagem propõe integrar no modelo anterior as seguintes variáveis, além da já referida “resultados” (outcomes): “alavancar” (leverage), “capital intelectual” (intelectual capital) e “capital social” (social capital). Vejamos brevemente em que consiste cada um destes conceitos e como Hargreaves os integra num modelo teórico explicativo.

Leverage (alavancar) tem a ver com a relação entre o que faz o professor e os resultados escolares. Hargreaves (2001) define este conceito “como a qualidade e quantidade de mudanças realizadas no estado intelectual e moral dos estudantes como resultado do nível de energia investido pelo professor” (p. 489). Este conceito pode ter quatro combinações, sendo que a ideal é aquela em que “os professores que trabalham em escolas eficazes partilham e aplicam com regularidade uma combinação de estratégias de alavancagem de alto nível e evitam as de baixo nível: respondem aos pedidos de mudança trabalhando de um modo mais inteligente e não trabalhando mais” (Hargreaves, 2001, p. 489). Segundo Hargreaves compreender a eficiência da escola implica também descobrir como é que estratégias de “alavancagem” de alto nível funcionam para produzir bons resultados escolares. Trata-se de perceber, debater e trocar experiências sobre as estratégias específicas que os professores vão ensaiando na prática e que dão origem a melhores resultados dos alunos. Penso que esta cultura não faz parte de muitas escolas portuguesas. Quando digo escolas são todas as que integram o sistema educativo do pré-escolar ao ensino superior. Já houve tempos em que era mais comum esta partilha, debate e procura de soluções instrutivas ou pedagógico-didáticas entre professores do mesmo grupo disciplinar. Como disse no início, sou professora universitária há mais de 30 anos. E esta cultura existiu e agora quase já não existe. Os professores até podem reunir, penso que há uma tendência para a “reunite”, uma espécie de vírus que entrou em muitas escolas, mas não para tratar de temas de ensino e aprendizagem, de melhoria da atividade docente.

As outras duas variáveis que refere Hargreaves são o “capital intelectual” e o “capital social”. O que significam estas noções? O capital intelectual é definido por Hargraeves (2001) como a soma de conhecimento e experiência de todas as partes interessadas que integram a comunidade escolar de que podem alcançar os objetivos delineados para a escola.

O capital intelectual cresce numa organização através de dois processos: o desenvolvimento de novo conhecimento e a capacidade de o transferir para novas situações e pessoas.

O capital social, ainda segundo o mesmo autor, integra também duas dimensões: a cultural e a estrutural. A cultural diz respeito ao nível de confiança que existe entre as pessoas que compõem a comunidade escolar e a existência de normas de reciprocidade e colaboração. A dimensão estrutural refere-se às redes em que as pessoas estão envolvidas por laços fortes. Por isso, numa escola onde existe um elevado capital social, existem níveis elevados de confiança que geram redes de ligação fortes e de colaboração entre todos os intervenientes. E deste modo um elevado grau de capital social faz também elevar o capital intelectual.

São estas variáveis e as suas ramificações que tornam uma organização escolar mais eficiente. Relembro as variáveis: resultados (outcomes), “alavancagem” (leverage), capital intelectual (intelectual capital) e capital social (social capital).

Resumindo e nas palavras de Hargreaves (2001, p. 490): “Uma escola eficiente mobiliza o seu capital intelectual (especialmente a sua capacidade de criar e transferir conhecimento) e o seu capital social (sobretudo a sua capacidade para gerar confiança e manter as redes sociais) para alcançar os resultados de excelência intelectual e moral desejados, através do uso bem-sucedido de estratégias de “ancoragem” de alto nível fundamentadas em práticas profissionais inovadoras e informadas por evidências”.

Este modelo é depois desenvolvido por Hargreaves nas suas diferentes dimensões e implicações práticas e apresenta três cenários para o testar. Vou apenas referir o cenário que diz respeito à eficiência docente (teacher effectiveness), pois este é o nível que cada um de nós pode alterar e que me permite referir a desvalorização crescente do papel social do professor. Devemos também incluir aqui o facto da progressão na carreira estar praticamente congelada ou então ser feita com base no “amiguismo” e na “obediência” e não em critérios credíveis de avaliação da competência pedagógica e científica de cada professor. Este tema dava também azo à escrita de um outro artigo.

A eficiência docente e a desvalorização do papel social do professor

Existe já um conjunto de evidências empíricas que caracterizam o que podemos designar de “bons professores”, quer dizer, aqueles que pelo modo como planificam, organizam e dinamizam as atividades de aprendizagem dos alunos, obtêm melhores resultados (student achievement) (cf. Hattie, 2009; Hargreaves, 2001). E existe também alguma evidência empírica de como o ambiente de cada escola e comunidade escolar (a cultura e ethos de cada escola) influencia estas boas práticas. E, claro, estas têm uma relação com a política educativa que é incentivada em cada país.

Hattie (2009), no livro “Visible Learning”, refere as estratégias de ensino que nos vários estudos por ele analisados, que apresentam resultados meta-analíticos, produzem melhores resultados na aprendizagem dos alunos. Não se trata só de descrever melhores resultados e de fazer correlações com determinadas estratégias de ensino, mas de apresentar evidências da “magnitude de efeito” de várias estratégias, quer dizer, as que melhores resultados produzem. Como refere no livro, é preferível fazer alguma coisa do que não fazer nada. Mas o problema não se pode colocar deste modo. O problema está em saber o que funciona melhor, sobretudo em países como o nosso com parcos recursos. Não posso enumerar tudo o que está descrito neste muito bom livro. Vou salientar apenas algumas estratégias usadas pelos bons professores e como o ambiente de cada comunidade escolar facilita e incentiva estes procedimentos. Trata-se também de definir uma boa política de formação inicial e contínua de professores a nível nacional, que incluiu um sistema de colocação de professores justo e eficiente e de criar incentivos remuneratórios e progressão na carreira adequados e justos.

Os bons professores, além de dominarem bem a matéria que ensinam, quer dizer, saberem e serem mais competentes do que os alunos, formulam objetivos de desempenho claros que todos sentem que podem alcançar. Organizam atividades/tarefas de aprendizagem desafiadoras que envolvem os alunos na resolução de problemas, de preferência realizadas em pares. Dão feedback corretivo e analítico que permite aos alunos reverem as suas respostas e soluções, visando alcançar os objetivos. Formulam critérios de avaliação do desempenho claros que facilitam a autocorreção e, não menos importante, geram um clima de sala de aula onde é possível errar e corrigir os erros, onde se podem levantar dúvidas e continuar a ser respeitado. Mas para que isto aconteça é necessário todo um ambiente escolar propício a este desempenho individual. Por exemplo, num estudo citado por Hargreaves (2001), os autores Stigler e Hiebert (1999), baseados nos resultados do terceiro TIMMS, referem que os estudantes alemães e japoneses eram melhores do que os americanos, porque passavam mais tempo a desenvolver procedimentos para resolver problemas do que a memorizar conceitos e a aplicá-los, como eram as práticas de muitos professores americanos. E os professores japoneses e alemães apoiavam os alunos no desenvolvimento dos procedimentos de resolução de problemas complexos, colocando “andaimes” como, por exemplo, dividir um problema nas suas componentes. Referem também que as partes de uma aula de matemática destes professores “estavam cuidadosamente relacionadas gerando um fluxo narrativo sem sobressaltos” (Hargreaves, 2001, p. 500).

Como aprenderam estes professores a terem estes guiões (scripts) de aula tão bem dominados? Segundo Hargreaves (2001) e Hattie (2009) não basta mudar ou aprender apenas um ou dois elementos ou estratégias deste processo. É necessário conhecer todas as dimensões e saber orquestrá-las. Exige prática, reflexão sobre a prática e trabalho de equipa. Segundo Stigler e Hiebert, participar no desenvolvimento profissional dos professores dentro de cada comunidade escolar ou de cada escola faz parte do trabalho do professor no Japão. O mesmo se passa na Finlândia. Nestes grupos disciplinares entre pares (que podem ter convidados externos) os professores trocam experiências e testam novas estratégias instrutivas. Observam-se uns aos outros e vão desenvolvendo uma linguagem que permite falar sobre o modo como fazem, quer dizer, que estratégias e sequências de ensino usam e dão melhores resultados. Como estes são fruto do trabalho coletivo, a crítica não é sentida como ameaçadora, coisa que é raro acontecer em Portugal. Sei-o por experiência própria.

Devemos ainda acrescentar que no Japão e na Finlândia a profissão docente é socialmente muito valorizada. Só os melhores alunos do ensino secundário conseguem ter acesso à formação inicial, ela mesma muito exigente, e têm depois todo o apoio na formação continuada, antes referido. Auferem também remunerações condignas e têm uma carreira bem estruturada.

A pergunta que levanto para pensar e terminar esta reflexão é a seguinte: Será que neste momento em Portugal, com as condições de acesso à profissão e progressão na carreira, as baixas remunerações, a instabilidade do corpo docente existente em muitas escolas, o modelo burocrático e injusto de avaliação de desempenho, o retirar de autoridade aos professores, etc. etc. existem condições para desenvolver um ensino de qualidade em grande parte das escolas do país?

Referências

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(Tradução de A. Rabaça). Lisboa: Editorial Estampa.

Guilhermina Miranda

Guilhermina Lobato Miranda, é psicóloga de formação e Professora no Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, onde coordena o Doutoramento em Educação, especialidade em Tecnologias da Informação e Comunicação na Educação. Atua na área da Educação, em particular nos domínios da Psicologia da Educação e da Tecnologia Educativa. Os seus interesses de ensino e investigação situam-se na confluência destes dois grandes domínios e em particular na Conceção de Ambientes de Aprendizagem suportados em tecnologias. Estes ambientes podem ser em regime presencial, b-learning ou e-learning. As bases conceptuais da investigação que realiza e orienta são as teorias da aprendizagem e da instrução (instructional design) e em particular a Teoria Cognitiva da Aprendizagem Multimédia de R. Mayer e a Teoria da Carga Cognitiva de Sweller e Chandler e ainda alguns modelos instrutivos como o 4C/ID, desenvolvido por van Merriënboer. Interessa-se ainda pela comunicação das emoções mediada por computador.

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